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Artigo – A inteligência artificial e o registro de imóveis – Parte II
23 DE AGOSTO DE 2024
Introdução
Na primeira parte deste trabalho, meu colega de pesquisas, Sérgio Jacomino, lançou algumas questões envolvendo a assimilação da IA nas rotinas de um cartório de Registro de Imóveis.
A mim coube, no âmbito do NEAR-lab – Núcleo de Estudos Avançados do Registro de Imóveis eletrônico, desenvolver algumas rotinas a fim de testar a funcionalidade da ferramenta aplicada à solução de alguns problemas bastante comuns nas serventias imobiliárias. Criamos uma área de trabalho (workspace) na qual interagem alguns pesquisadores para desenvolvimento e especialização da ferramenta de IA e aplicando seus recursos em tarefas próprias dos cartórios de Registro de Imóveis.
Nos últimos três meses buscamos simular a execução das rotinas mais complexas e trabalhosas do processo de registro, considerando a aplicação da IA para ganho de eficiência e desempenho. A breve demonstração levada a efeito, e referida abaixo, abre um horizonte de grandes possibilidades e oportunidades, mas revela, igualmente, imensos riscos.
Boas perguntas – melhores respostas
De partida, percebe-se que a maior precisão da resposta da máquina está vinculada à qualidade da pergunta, vale dizer: o prompt da máquina deve receber demandas bem estruturadas e afinadas para obtenção de respostas qualificadas. Assim, para cada espécie de título apresentado, há um script específico que foi convertido pela máquina para interagir com a plataforma.
POC SREI-GEN
O projeto denominado “POC SREI-GEN” ou “Prova de Conceito do SREI Generativo” teve por objetivo testar o uso de agentes virtuais especializados para automatizar tarefas repetitivas e complexas do processo de registro de imóveis, considerando alguns de seus desafios atuais:
- Título em conteúdo desestruturado, em papel e em forma narrativa;
- Matrícula e atos escriturados em papel em forma narrativa;
- Exame de grande volume de documentos acessórios dos títulos;
- Exame de requisitos complexos, como por exemplo identificação de operações para comunicações para comunicar ao Siscoaf – Sistema de Controle de Atividades Financeiras;
- Necessidade de coordenação de dados entre as diversas fontes e etapas do processo.
Durante o projeto, desenvolvemos alguns chats de IA, denominados agentes virtuais especialistas, para desempenhar e automatizar tarefas específicas em cada etapa do processo. A esses agentes demos o nome de agentes registrais.
A partir da aplicação de técnicas de engenharia de prompts, especializamos os agentes registrais para receber o título e os documentos comprobatórios apresentados para registro, bem como a matrícula do imóvel, fornecendo como saída resultados específicos esperados em cada interação do processo.
Considerando a metodologia de notação BPMN – Business Process Model and Notation1, mapeamos e selecionamos algumas rotinas presentes nos principais processos do registro, como a recepção, pré-qualificação de títulos e a qualificação registral. Buscou-se testar o uso do modelo de linguagem natural nestas rotinas, para leitura e compreensão dos conteúdos dos títulos e da matrícula do imóvel. Testamos alguns dos modelos de IA disponíveis atualmente, como, por exemplo, o ChatGPT-4o, um modelo de linguagem desenvolvido pela OpenAI baseado na arquitetura GPT-4 (Generative Pre-trained Transformer 4). Esse modelo foi treinado usando uma grande quantidade de dados textuais, permitindo que ele compreenda e gere texto de forma coerente e contextual.
No evento de Coimbra, apresentamos alguns vídeos práticos da atuação dos agentes registrais especialistas em cada etapa do processo. Por exemplo, as etapas iniciais de recepção e pré-qualificação do título exigem atualmente um enorme esforço de leitura e identificação das informações do título. O primeiro agente registral demonstrado visou fornecer os dados estruturados do título, considerando:
- Título e negócio jurídico;
- Imóvel;
- Pessoas envolvidas;
- Valores e condições de pagamento;
- Cláusulas contratuais obrigatórias.
Exemplo de atividades dos processos “Recepcionar” e “Pré-qualificar título”
Além dos desafios atuais do processo, a implantação do SREI – Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis exigirá dos registradores a adoção de novos parâmetros e rotinas operacionais estabelecidos principalmente no art. 10 do provimento CNJ 89/19.2 Dentre as novas práticas, será necessário realizar a atividade de “primeira qualificação eletrônica” com o objetivo de permitir a migração de um registro de imóvel existente efetuado no livro em papel, seja transcrição ou matrícula, para o formato de registro eletrônico denominado matrícula eletrônica.
Exemplo de atividades do processo de “Qualificação Registral”:
Em relação ao processo de qualificação eletrônica, especializamos agentes registrais para desenvolver rotinas como:
- Análise da matrícula para consolidação da situação jurídica;
- Exame do título e de documentos comprobatórios;
- Exame de requisitos exigidos para comunicação ao Siscoaf;
- Estruturação de dados para auxiliar o exame e qualificação;
- Comparativo de elementos do título com a matrícula do imóvel;
- Consulta às leis e jurisprudência especializada sobre a matéria;
Também foi possível integrar os agentes registrais em um único processo de registro, sendo necessário fazer o upload do título e da matrícula apenas uma vez.
a) Os principais resultados do projeto foram:
- A eficiência da automação de tarefas complexas ou trabalhosas;
- Especialização de agentes registrais especialistas por etapa do processo;
- Maior coordenação entre as etapas dos processos;
- Precisão e controle de saída;
- Instruções e base de conhecimento aprovadas pelo registrador;
- Verificação de integridade dos resultados;
b) Pontos de atenção ao uso da IA no RI:
- Privacidade e segurança de dados;
- Dependência tecnológica;
- Responsabilidade legal;
- Decisão final será sempre do registrador.
Uma das importantes conclusões do projeto, foi identificar um aspecto essencial e indispensável do processo registral que é a necessidade do registrador realizar a devida conferência e revisão escrupulosa dos resultados gerados pelos agentes registrais. As ferramentas de IA proporcionam rapidez, agilidade, eficiência e precisão, permitindo que o registrador se concentre em aspectos mais complexos e subjetivos do processo de registro, porém não o substituindo em seu poder decisório, nem exonerando-o das responsabilidades inerentes à atividade.
Um aspecto que deve merecer toda a nossa atenção é relacionado com o tema da privacidade e segurança de dados no uso da IA, além das responsabilidades legais e éticas que implicam o uso da IA nos processos de registro. A questão da transparência e da não discriminação nos sistemas de IA é crucial para garantir que a tecnologia seja utilizada de maneira justa e ética. Outro tema relevante é a necessidade de regulamentação específica para a IA, especialmente em áreas que envolvam direitos de personalidade.
É necessária e urgente a regulamentação sobre o uso da inteligência artificial no Brasil. O projeto do Novo Código Civil3 inaugura o Livro VI sobre o Direito Civil Digital e, em seu capítulo III, define como “situação jurídica digital toda interação no ambiente digital de que resulte responsabilidade por vantagens ou desvantagens, direitos e deveres entre: Entidades digitais como robôs, assistentes virtuais, inteligências artificiais, sistemas automatizados e outros.” O capítulo VII dedica-se especificamente a temas relativos à inteligência artificial.
Também estão em tramitação o PL 6.119/234, que trata da alteração do Código Penal para punir fraudes publicitárias utilizando IA, e o PL 2.338/235, que estabelece normas gerais para o desenvolvimento, implementação e uso responsável da IA com foco na proteção de direitos fundamentais, transparência e mitigação de riscos.
Conclusões – Uma ruptura paradigmática do sistema registral?
Progressivamente, os meios eletrônicos foram se insinuando no processo registral, transformando-o profundamente. Na era digital, deparamo-nos com um ambiente totalmente novo, interdependente, interconectado, interligado full time, gerando impulsos que são percebidos e assimilados por sofisticados sistemas de IoT, gerando padrões estatísticos que nos revelam, por exemplo, distorções que possam ocorrer no processo registral.
As novas ferramentas capturam detalhes que os humanos já não podem assimilar, interpretar e processar, especialmente no contexto de avulsão de dados (big data). Já as máquinas podem diagnosticar, de modo automatizado, desconformidades com padrões normativos, legais ou até mesmo com a praxe consolidada nos cartórios. Além disso, é possível identificar ocorrências suscetíveis de especial atenção (Siscoaf, indisponibilidades etc.), robustecendo a segurança do sistema.
A partir da especialização de ferramentas de IA é possível obter resultados mais consistentes com o intuito de acelerar a assimilação de conhecimento sobre matérias complexas e extensas, incluindo temas exigidos para análise e qualificação de títulos apresentados para registro.
Entretanto, a resposta da máquina depende diretamente da instrução que lhe é fornecida (prompt). Um prompt cuidadosamente elaborado orienta o modelo com mais eficiência na produção da resposta ou do conteúdo almejado, elevando tanto a pertinência quanto a exatidão do resultado.
A engenharia de prompts aplicáveis ao Registro de Imóveis fornecerá uma interação mais eficiente com as aplicações de IA. A partir da uniformização e padronização de termos aplicáveis ao registro de imóveis é possível “ensinar” a máquina a assimilar com maior precisão os significados das informações e fornecer resultados muito mais consistentes e adequados.
Enfim, são inúmeras as possibilidades de aplicação da IA aos processos de registros. A ferramenta deverá operar como uma espécie de AVR – assistente virtual registral, oferecendo ao registrador apoio em atividades práticas como exame e qualificação do título ou, ainda, na consolidação da situação jurídica atual do imóvel.
Fonte: Migalhas
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